O Le Monde não sabe se é golpe ou farsa. Joaquim Barbosa, que já chamou de “encenação pra justificar a tomada do poder”, define a patacoada como “impeachment Tabajara”. Difícil mesmo classificar o que aconteceu com o Brasil, mas fiquem à vontade para chamar de golpe. Quer ser mais preciso? Chame de golpe parlamentar. Ou “palaciano”, como preferiu a antes negadora do golpe, Luciana Genro.
Não bastou o Ministério Público Federal e a perícia do Senado apontarem que Dilma não cometeu crime. O palco já estava armado, os artistas ensaiados, o roteiro escrito. Nada iria estragar o show que já tinha o seu desfecho definido.
À Dilma foi garantido amplo direito de defesa, mas ela poderia trazer Jesus Cristo para testemunhar a seu favor que nem a bancada evangélica daria ouvidos. Todo o ritual democrático foi seguido numa vã tentativa de conferir legitimidade à farsa. Nessa pantomima, é Jesus.com quem vamos celebrar, já que, sem ele, nada disso seria possível. Aqui tudo é disfarçado, dissimulado, fantasiado. Tudo parece, mas não é.
As condições materiais para o ato final estavam garantidas: o congresso mais conservador desde 1964, uma imprensa disposta a cobrir docilmente o espetáculo e um STF na plateia, assistindo a tudo em silêncio. O cenário estava pronto para os senadores executarem suas performances.
Sem o mesmo suor e swing do primeiro ato na Câmara, mas com a mesma dose cavalar de hipocrisia, o julgamento no Senado foi outro grande desfile do chorume brasileiro: ciclistas fiscais julgando pedaladas. Famílias escravocratas apontando a canalhice alheia. Ladrões do dinheiro público cobrando ética na política. O circo da hipocrisia voltou, senhoras e senhores!
Janaína Paschoal desempenhou com louvor o seu papel de protagonista no grande show. Munida do seu já famoso neopentecostalismo-jurídico, Jana evocou Deus, chorou e mostrou estar imbuída da divina missão de salvar os netos de Dilma. Uma querida!
Mas nada foi tão simbólico quanto a indumentária de Ana Amélia (ex-Globo e, atualmente, no PP). Ela considerou adequado ir à votação fantasiada de Constituição. Uma fantasia que caiu como uma luva para um show que podemos chamar de cosplay da democracia.
Senadores admitem que #impeachment aconteceu sem crime de responsabilidade fiscal pic.twitter.com/PqV7Sd6C0x
— The Intercept Brasil (@TheInterceptBr) August 31, 2016
Viram a franqueza? Vamos registrar aqui as confissões.
Acir Gurgacz (PDT) nem corou: “Nós temos a convicção de que não há crime de responsabilidade fiscal nesse processo, mas falta governabilidade”.
Wellington Fagundes (PR-MT) também mandou na lata: “a maioria aqui nós votamos [SIC] exatamente pela questão da governabilidade”.
Telmário Motta (PDT) também não enrolou: “Considero que a presidente Dilma não foi afastada pela prática de crime algum, mas, sim, por posturas políticas adotadas que não foram capazes de conquistar uma base de apoio congressual minimamente favorável ao seu governo”.
Esses senadores estão afastando uma presidenta democraticamente eleita por falta de governabilidade – aquela, que Eduardo Cunha e sua legião boicotaram de todas as maneiras. Estão convictos da inocência da acusada, mas a condenaram assim mesmo.
É a lógica cristovambuarquiana atualizando o Direito a seu modo. Vejam o que o senador do PPS disse ao El País:
Na dúvida sobre a inocência, prenda o acusado. É mais ou menos o que se fazia no Brasil depois de 1964.
Quatro raras performances de franqueza no circo da hipocrisia, mas não foram as únicas. A Família Bolsonaro também fugiu da encenação, demonstrando que até no golpismo há de se ter dignidade. Pai e filho fizeram um paralelo com o Golpe de 64 e novamente homenagearam os militares:
Não me parece uma comparação tão esdrúxula. Por tamanha franqueza, os Bolsonaros merecem um lugar de honra no Memorial do Golpe a ser construído pela História.
E pra encerrar gloriosamente essa pantomima democrática, só mesmo se Michel Temer fosse atrás de legitimidade na China.
Parabéns ao The Intercept Brasil, pelas matérias de qualidade apresentadas desde a sua criação… Tenho acompanhado sempre o jornalismo de qualidade feito por vocês, e espero que continuem incomodando aos despreparados, com suas matérias calçadas em dados e fatos reais, e sempre com as fontes citadas…
Pois é, essas forças se mostram cada vez mais astuciosas. Será essa a tônica dos golpes da direita nos países q por muito tempos a esquerda vier a governar.
A hipocrisia é a que reina por aqui…quero ver quando vão investigar furnas, pelo que vi NUNCA. O que é importante nunca é por aqui
Muito bom
Me irrita a manipulação maniqueísta, as meias verdades que blogueiros anti-impeachment estão difundindo a favor do PT e da Dilma.
Primeiro, esse artigo propositalmente confunde crime comum com crime de responsabilidade. Diz que o MPF confirmou que Dilma não cometeu crime, como se fosse o mesmo objeto do impeachment, o que é falso. O MPF confirmou, na mesma oportunidade, que Dilma cometeu improbidade administrativa pra maquiar a situação fiscal – o que reafirma a tese de “crime de responsabilidade”, não a afasta.
Essa frase, então, é o cúmulo da falsidade (ou seria ignorância mesmo?):
“Na dúvida sobre a inocência, prenda o acusado.”
Prender?! Tá fingindo que não entendeu o que Cristovam falou – distinção corretíssima que ele fez entre um processo penal e um impeachment – típico argumento do espantalho.
Eu discordo do impeachment por vários motivos. Mas não compactuo com os hipócritas e falsos que agora usam da oportunidade pra maquiar a realidade, esconder os seus “pecados” em benefício próprio.
O maniqueísmo não se justifica: a farsa do impeachment não significa que Dilma é inocente. Significa apenas que os interesses da maioria dos parlamentares são outros, escusos. Se esse país fosse sério, a Dilma e o PT seriam sacados do poder sem essa farsa, por que motivos há de sobra.
A tragédia do Brasil é que está dividido entre dois blocos de canalhas desonestos, hipócritas medíocres – e não são só os políticos, mas tb os jornalistas em ambos os lados, os ativistas e as massas. O Brasil é que se fode nessa guerra sectária vigarista.
“o que reafirma a tese de crime de responsabilidade” – só se for a sua, correto? “Tese” não é conclusão de nada, e o processo foi arquivado no MPF e descaracteriza crime de responsabilidade. Por quê? Porque não há crime de responsabilidade, improbidade administrativa não é crime de responsabilidade e a Constituição não usa a palavra “crime” à toa.
Só lembrando que Dilma foi acusada de de descumprir a lei orçamentária e de realizar uma operação de crédito [que, de novo, não constituem crime de responsabilidade], e é essa é efetivamente a discussão que se deveria fazer na sociedade. Mas parece que você – supostamente interessado nos fatos e não nos argumentos – com suas meias verdades, chega aqui para tentar desqualificar o que foi reportado e é real.
Nossa, que ignorância teimosa e petulante!
Crime de responsabilidade não é crime comum! A maioria das hipóteses de crimes de responsabilidade previstas na lei não são crimes no âmbito penal!
Improbidade administrativa é, EXPRESSAMENTE, uma das categorias da lei de crime de responsabilidade. Você nega isso sendo que a lei é super clara nisso, não há qualquer controversia, isso é pura ignorância sua.
Se of MPF atestou que Dilma cometeu improbidade administrativa ao emitir decretos de abertura de crédito, reforçou sim a tese de que Dilma cometeu crime de responsabilidade, pois tanto improbidade administrativa quanto abertura de crédito irregular são previstas na lei de crime de responsabilidade!
Povo ignorante é manipulado igual gado pelos políticos e “formadores de opinião” desonestos ou igualmente ignorantes.
Joaquim Barbosa é contra o impeachment mas tambem disse o seguinte: “Do ponto de vista puramente legal, está tudo certo”. As pedaladas fiscais sim existem, até Lula admitiu isso. A única defesa foi que os governos anteriores fizeram o mesmo e nao houve impeachment; mas tem o príncipio “nullo actore nullus iudex.”
Se Dilma tivesse tido mais habilidade política e um entendimento básico das causas da profunda recessão econômica (China ou os commodities tem pouco a ver), o impeachment nunca ia prosperar. Ela conseguiu reunir um dos parlamentos mais fragmentados da hemisféria occidental.
Perfeito o texto, mais didático impossível!
Maravilha. Bela narrativa. Tudo dentro da coerência hipócrita. Quem sabe, um dia quem sabe virá a tona quanto custou (U$) cada voto dessas ilustres e honradas excelências.
Simples e direto, o melhor resumo do que foi esse processo de impeachment cheio de links pra disponibilizar para os amigos e familiares de outra convicção política.
João, excelente texto, mas acho que cabe uma crítica. O que você destacou está cristalino nos fatos e simplesmente é ignorado pela opinião pública e boa parte da sociedade, por pura hipocrisia. Portanto, do ponto de vista de formar opinião, você está “pregando para convertidos”.
Acho que falta a alguém da imprensa empregar um esforço maior a uma tarefa mais complexa: derrubar o argumento falacioso de que o impeachment veio das ruas, de um povo inconformado pelo governo. Vejo duas vertentes importantes:
1. Movimentos sociais considerados apartidários usaram a população como massa de manobra. Alguém precisa desconstruir esses movimentos não pelo que fizeram, mas sim pelo que estão fazendo agora no pós-impeachment. Como o MBL pode ser um movimento anti-corrupção e pró Michel Temer / PMDB? Como um de seus fundadores pode se candidatar pelo DEM?
2. Dilma ganhou as eleições com pouco mais da metade dos votos, num país divido. Não só a oposição como boa parcela da população não aceitou a derrota. Já se falou em impeachment semanas após a eleição. Não havia mérito em encher a Avenida Paulista numa cidade onde Dilma perdeu. Simplesmente milhões de derrotados foram as ruas protestar.
Se invalidarmos a nascente deste processo, tudo que vem em seguida, por mais absurdo que seja, se torna menos importante a essa retórica baseada em falácias e argumentos hipócritas.
Ótimo texto. Este impeachment, golpe,”pausa democrática”, é o retrato do egoísmo e do excesso de confiança que muitos depositam na imprensa. Que tristeza