Por muito tempo não conseguia enxergar quando estava diante de um ato racista. Até porque uma neblina me impedia de ver que era de fato negra. Mesmo sabendo que branca não era – uma confusão bem comum no Brasil do colorismo. Mas aprendi que não é só quando alguém delimita o que é ou não coisa de preto que o racismo acontece.
Tomei alguns bons baldes de água fria no meio do meu processo de entendimento como mulher negra. Com eles, veio a percepção de que o racismo sempre esteve presente na minha vida: em casa, na escola, na aula de dança ou entre amigos. Ele sempre esteve lá.
Ele é tão enraizado na estrutura da sociedade que muita gente não se dá conta de suas atitudes racistas. E muitos, assim como eu, não percebem quando estão sendo vítimas. Mesmo os mais progressistas reproduzem estereótipos e contribuem para a perpetuação do racismo, até em brincadeiras e elogios.
Demorei para entender que “ter tido a sorte” de não ter nascido com o “cabelo ruim do meu pai” não era uma vantagem. Ou que ser “elogiada” pela minha “beleza exótica” de “morena cor de jambo” não era nenhuma honra. Ou, ainda, que ter um “quadril de boa parideira” não era sorte alguma. Aliás, nada disso impediu que eu não fosse convidada para aquela festinha da escola particular de alunos brancos em que eu era bolsista, de ser vigiada pelo segurança quando entro em uma loja, ou de não ser atendida em um restaurante (sim, aconteceu).
As situações estão sempre acontecendo e se repetindo. E sim, é só porque sou preta. Neste ano, no período de uma semana, me vi em três situações onde o racismo se apresentou de forma sutil, pronto para passar despercebido, mas ele estava lá. Fiquei remoendo o sentimento de desdém e analisando o porquê de cada coisa.
Meu falecido avô branco, que carinhosamente me chamava de pretão – para a loucura de vovó que sempre o lembrava que na verdade eu era moreninha -, precisou ser hospitalizado. Ele teve de passar por um determinado procedimento em que precisava de acompanhante. Eu, por já ter trabalhado na área da saúde e em emergência, me ofereci. Entrei na sala empurrando a cadeira de rodas e meus tios brancos ficaram aguardando no corredor. No meio do atendimento me perguntam se fazia tempo que eu era cuidadora dele, pois pela afinidade ele parecia gostar bastante de mim.
Respondi que eu era neta. O enfermeiro pediu desculpas envergonhado.
Estava em uma loja na Zona Sul carioca dando aquela olhadinha quando uma senhora meio ríspida me questiona sobre um produto. Fui confundida com uma das funcionárias. Um clássico. Não, minha roupa não se parecia com o uniforme da loja. Não, eu não lembrava nenhuma das funcionárias do lugar (todas brancas, inclusive). Simplesmente, eu era a mais “escurinha” do local.
Essa situação já aconteceu tantas vezes que já tenho até uma resposta pronta. Em todas as vezes me senti agoniada. Só não sabia o motivo. Mas agora entendo que é pelo racismo embutido neste inocente ato de confusão. Ao que parece, existe uma regra que diz que preto em loja ou é assaltante ou é funcionário. Não podemos ter poder de compra e precisamos sempre estar na posição de quem serve.
Peguei um Uber na Baixada Fluminense em direção à Zona Sul. Uma distância que pode render uma longa conversa com o motorista. Digo que estou a caminho do trabalho e ele, sabemos bem o porquê, deduziu que eu era doméstica e tinha um patrão maravilhoso por me pagar um Uber – disse que atendia uma governanta que fazia o mesmo trajeto. Então, resolvo dizer que sou jornalista – queria causar climão mesmo – e eis que vem a frase: “Você não tem cara. Não parece”.
O motorista, também preto, ficou chocado com a informação. Para ele, esse tipo de profissão não é o que se espera de um preto, principalmente um preto da Baixada. Não contei para ele que esse pensamento era reflexo do racismo estrutural, mas me vi na obrigação de fazer um discurso meio motivacional dizendo que era possível sim.
Ele encerrou a corrida dizendo que eu era muito esforçada.
Há um tempo atrás, não conseguiria enxergar o que havia de errado nestes casos. Hoje, sei que acontecem porque esperam menos do preto. O entendimento do que é ser negro passa pela reconhecimento do racismo e, consequentemente, das situações em que ele ocorre. Repito que precisamos apontar toda e qualquer atitude racista. Precisamos deixar de negar o racismo.
O bom texto me fez também pensar sobre como mudar esse estado de coisas. Provavelmente não vai ser somente com a denúncia do racismo. Mesmo que a denúncia provoque reações contrárias ao racismo, ela não afeta enormes grupos que desde sempre cresceram com a cultura do racismo e também do desprezo aos mais pobres.
Na minha opinião, para mudar esse estado de coisas é fundamental uma política de educação, inclusão, quotas incluindo segmentos mais pobres da população e todo tipo de medidas que reduzam a injustiça social. Aonde eu quero chegar? Eu acho que algumas pessoas racistas (seja qual for a cor da pele) só vão começar a mudar de opinião quando, por exemplo: forem atendidas por médicos que não sejam “brancos”. O mesmo para locutores de TV, atores/atrizes, políticos, governantes, juízes, professores etc. Ou seja, é preciso resgatar a enorme e secular dívida social que ainda não foi resgatada. Para resgatá-la os desafios são grandes. Basta ver a reação que houve às medidas de inclusão implantadas nos governos do PT. Algumas dessas medidas foram efetivas e de baixíssimo custo, mas mesmo assim a reação dos “de sempre” foi violenta. Por curiosidade os “de sempre” não reagem ao perdão das dívidas de grandes empresas, compra de deputados com “emendas”, juros altos da dívida pública e redução dos investimentos com educação e saúde.
Nada que Jessé Souza não explique em seus livros.
Realmente um texto excelente e REAL. Acrescentaria que a partir do momento que apontamos as diversas situações de racismo embutido, numa simples frase ou ação no dia a dia, nós negros somos rotulados de sermos os maiores racistas porque apontamos o que ocorre.
É mole não.
Excelente texto Juliana! Fácil de ler, porém denso no sentido de possibilitar novas reflexões sobre o assunto. Vou sugerir a leitura!
É inacreditável que ainda estejamos nos escondendo da realidade. Aonde o racismo se esconde? Oras, no interior de cada um! Todos, sem exceção, ignorantes, nesse discurso interminável que, ou nos afasta, ou nos mantém nesse limbo da barbárie escravagista. ANTROPOLOGIA! ANTROPOLOGIA! Mas ninguém escuta, estamos todos cegos e submetidos ao controle mental? Afirmei, afirmo e afirmarei: OU A ANTROPOLOGIA É UMA CIÊNCIA E O RACISMO UMA PATOLOGIA, ou o racismo é a prova da patologia da sociedade como um todo, inclusive e, evidentemente, de suas vítimas: negros, índios e mestiços (Aqui, naturalmente. No Oriente, os palestinos … na Índia, os sudras … na Alemanha, os turcos, e assim caminha o que se denomina humanidade ). Quanto aos negros, continuamos divididos entre o pessoal da senzala, da casa-grande, os capitães-do-mato e o quilombolas. Numericamente, a casa-grande e os capitães do mato, muitos atuando em par-ti-dos políticos representantes da casa-grande, não são maiores do que os que se mantém nas senzalas-favelas e nos navios negreiros transformados em penitenciárias, todavia, é das favelas que se constroem os exércitos de capitães do mato, enquanto a casa grande escreve artigos, livros e faz conferências de mãos dadas com os senhores do grande engenho chamado Brazil. Em outras palavras: OU O HOMEM (ser humano) TEM ORIGEM NA ÁFRICA E, NESTE CASO, SOMOS TODOS NEGROS, ORIUNDOS DA RAÇA NEGRA, ou somente os negros tem origem nos sapiens e, então, os racistas são todos, sem exceção, por ação, omissão ou contaminação genética e psicológica, TODOS NEANDERTAIS. As provas são incontornáveis e historicamente fartas e definitivas. Veremos. (Estatuto da Igualdade Racial – Reciclagem ou Legitimação do Racismo? em https://vk.com/doc456891085_453736386).
Muito bom, Juliana Golçalves!
Maravilhoso texto. Um presentaço de 20 de novembro.
Adorei a imagética da neblina. Como dizia Bertrand Russell “A verdade está a um palmo do nosso nariz, e nós não a enxergamos”.
A matéria me fez recordar duas respostas que já dei ao ser confundido em lojas:
1 – Pergunta: “O senhor trabalha aqui?” Resposta: ”Não, e a senhora?”
2- Pergunta: “O senhor sabe o preço deste sofá?” Resposta: “Não, e a senhora sabe o preço desta mesa?”
Parábens Juliana.
Oswaldo
Aproveito a oportunidade do Dia da Consciência Negra para apontar grande estranhamento ao ver, no espaço do The Intercept, o uso, como fonte fidedigna, de artigo de Augusto Nunes e da revista para qual ele trabalha.
Após recente divulgação de flagrante ato de cínico racismo de jornalistas brasileiros em Washington, o reacionário jornalista Augusto Munes teve o despudor de sair em defesa pública do arrogante jornalista racista, coerente não só com a linha editorial da publicação murdochianasensacionalista onde trabalha, como no incentivo a atos de opressão fascista que o jornalismo empresarial dolosamente fez emergir entre nós.
Por acreditar na seriedade e honestidade da proposta de trabalho de The Intercept tão bem creditado pela imensa maioria dos importantes artigos a publicados no Brasil, penso que nem o racismo ou racistas, nem empresas ou jornalistas coniventes com o racismo possam seguir como fontes legítimas ou inspiração para o trabalho, na carreira de jovens, atentos e sérios jornalistas comprometidos com a verdade e o respeito a direitos na informação.
Nenhuma forma de opressão deve ser valorada. Pela lei Cancellier, pelo Rerendum Revogatorio, abaixo o golpe.
Texto emocionante. Parabéns.
Esse tipo de realidade alguns brasileiros “brancos” e racistas sentem na carne quando visitam a Europa e os EUA. De “brancos” passam a “morenos” ou a “latinos”. De repente o mundo deles gira de 180 graus e de fonte de racismo viram alvo de racismo. Essa experiência pode ser altamente educativa para esses brasileiros “brancos”, se tiverem um pouco de sensibilidade.
Juliana, saiba que tem gente aqui, como eu, que aprecia o seu trabalho e se comove com os seus textos. Bola pra frente com todo o talento e autoconfiança que você tem!
Parabéns por colocar a tona um tema de importância extrema.
Muito bom!
Excelente texto! Já compartilhando aqui via whats.