Dois dos maiores provedores de internet do Brasil — a Claro, dona da Net, e a Vivo — bloqueiam o acesso ao Woman on Waves, site que reúne informações sobre aborto seguro. A censura foi identificada em um mapeamento mundial sobre bloqueios de internet feito pelo Observatório OONI em parceria com a Coding Rights, organização que pauta direitos humanos e questões de gênero na tecnologia, a que tive acesso com exclusividade. Além do Brasil, só o Irã e a Turquia censuram o site.
Women on Waves é uma organização que promove o debate sobre direitos sexuais e aborto internacionalmente. O site é referência em informações sobre direitos sexuais e reprodutivos e como reduzir riscos ao fazer um aborto, mesmo em países onde a prática é ilegal como o Brasil. Em 2016, o site registrou mais de um milhão de acessos de brasileiros. Foi a partir do ano seguinte, 2017, que os clientes da Claro começaram a ter dificuldade em acessar o endereço. Em 2018, assinantes da Vivo também encontraram problemas, que duram até hoje. Isso levou o número de acessos brasileiros ao womenonwaves.com cair para 357 mil acessos brasileiros em 2019.
Como no Brasil o aborto é possível apenas em casos de estupro, anencefalia do feto ou risco de vida para a gestante, as mulheres que não estão nestes contextos e desejam abortar precisam recorrer a métodos clandestinos. Por causa da ilegalidade, a internet acaba sendo a principal fonte de informações e redes de apoio para essas mulheres. O Ministério da Saúde estima que o número de abortos clandestinos chegou a mais de um milhão em 2018. Uma em cada cinco brasileiras irá abortar pelo menos uma vez ao longo da vida reprodutiva e, em 2016, foi registrada uma morte a cada dois dias em tentativas de aborto, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto.
Com os bloqueios da operadora, fica ainda mais difícil encontrar informações que ajudem essas mulheres a diminuírem os riscos.
As primeiras denúncias sobre o possível bloqueio do Women on Waves no Brasil chegaram ao OONI no início de 2019. Desde então, a rede monitora como alguns provedores brasileiros respondem ao site, mas só detectou problemas na Claro, que controla a NET, e na Telefônica Brasil, que é vendida pela marca Vivo. Dois tipos de erros sugerem a censura: um mostrou que o DNS foi bloqueado; já o outro indica o IP entrou para uma lista de sites proibidos determinada pelo provedor. O OONI não foi o único a identificar o bloqueio brasileiro. Dados do site Censored Planet, que também monitora casos de censura, provaram que o bloqueio ao endereço womenonwaves.com é real.
As operadoras de conexão à internet centralizam o acesso a qualquer conteúdo que esteja na rede. Quando você digita um endereço, o provedor da sua operadora acessa o servidor onde o site está armazenado e abre o conteúdo da página no seu navegador — e o caminho inverso também ocorre. Esse tráfego de informações de uma ponta à outra só pode sofrer interferências quando a justiça brasileira atua, como aconteceu quando o WhatsApp saiu do ar no país inteiro por determinação judicial. Provedores só podem bloquear automaticamente sites quando há conteúdos sensíveis e ilegais, como pedofilia.
Maio de 2019 foi o mês com a maior quantidade de bloqueios no Women on Waves.
Só que compartilhar informações públicas sobre aborto seguro não é crime. “Quando provedores de internet decidem censurar o acesso à informação, sem transparência ou motivo legal, temos um ataque à liberdade de expressão”, me disse Joana Varon, diretora da Coding Rights. O relatório do OONI indica que maio de 2019 foi o mês com a maior quantidade de bloqueios no Women on Waves: só nos aparelhos monitorados pela OONI, foram mais de 200 casos.
As informações sobre métodos abortivos são públicas, baseadas em protocolos da Organização Mundial da Saúde, e é assim que a legislação brasileira os interpreta. Orientar quem já pretende abortar sobre como interromper uma gravidez de forma segura não é uma forma de apologia. Atualmente, a criminalização está na prática do aborto – ou seja, as únicas pessoas que podem ser presas nessas circunstâncias são as gestantes e quem auxiliar na interrupção da gravidez, como médicos e enfermeiros.
Perguntamos à Claro e à Vivo se tinham conhecimento do bloqueio do site Women on Waves. As empresas não responderam, mas encaminharam meus questionamentos para o SindiTelebrasil, sindicato que representa as operadoras. A instituição disse que esclareceu que “que o bloqueio de sites requer ordem judicial e que as operadoras não comentam decisões judiciais”, sem especificar qual decisão foi. Até a publicação dessa matéria, o site Women on Waves continuava censurado pela conexão da Claro/Net e funcionando na Vivo. Na Vivo, no entanto, o bloqueio ao site é intermitente – ora funciona, ora não.
O levantamento mundial de bloqueios feito pelo OONI identificou interferências no acesso aos dois sites da Women on Waves: o womenonwaves.org (no Brasil, Turquia e Irã) e o womenonweb.org (na Arábia Saudita, Coreia do Sul e Turquia). Destes, a Turquia é o único que descriminaliza o aborto – mas mulheres turcas denunciam que, na prática, são comuns os casos de hospitais públicos e particulares que adiam cirurgias até que se tornem inviáveis sob o argumento de que trata-se de uma recomendação governamental. A Turquia é também o único país que bloqueou tanto o Women on Waves quanto o Women on Web – site similar criado para contornar os bloqueios, porém hospedado em um servidor diferente.
No Brasil, o Woman on Waves contabilizava 1.165.445 acessos em 2016. Em 2019, o número caiu quase 70%.A redução drástica, provocada pela censura da Claro e da Vivo – as operadoras que dominam metade das conexões de internet banda larga do país – coincide com o endurecimento do governo no discurso contra o aborto.
Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, utilizou o próprio Twitter em agosto para criticar um artigo sobre formas seguras de aborto divulgado pela Revista AzMina. O material mapeia as possibilidades de aborto seguro pelo SUS e também traz instruções da Organização Mundial de Saúde sobre como interromper uma gravidez e utilizar métodos contraceptivos posteriormente. Damares denunciou a reportagem ao Ministério Público por “apologia ao crime”. Há menos de um ano, o Intercept publicou uma entrevista médica Débora Campos na qual era fala sobre como diminuir os danos de um aborto:
Meses antes, o Supremo Tribunal Federal organizou uma audiência pública sobre a descriminalização do aborto. O Intercept testemunhou o contraste nos arredores do prédio: de um lado estavam manifestantes vestidas como as personagens de The Handmaid’s Tale — uma série distópica onde todas as mulheres são obrigadas pelo governo a engravidar, sempre por meio de estupros. Do outro, religiosos rezavam em voz alta, repetidamente, para abafar os dados sobre aborto gritados pelas manifestantes.
Do lado de dentro, na audiência, vários pesquisadores e ativistas mostravam sua posição sobre o tema. Rebecca Gomperts, médica e fundadora do Women on Waves, foi uma delas. Gomperts apresentou uma série de depoimentos recebidos pelo Women on Waves via e-mail que demonstram que o acesso ao aborto no Brasil é difícil mesmo em situações onde o procedimento é permitido — como casos de estupro ou risco de vida para a mulher.
Entre 2016 e 2019, cerca de 2 mil mulheres morreram em tentativas de aborto no país – a maioria negra e pobre, segundo Maria de Fátima Marinho de Souza, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde. O fim do aborto não é uma questão para quem tem dinheiro – o acesso a clínicas clandestinas de alta qualidade ou até mesmo viagens a países onde o aborto é permitido continuam sendo viáveis. Mas, para as mulheres pobres que seguirão abortando com a legislação mudando ou não, a descriminalização e o acesso à informação pode significar continuar viva ou não.
O relatório completo sobre os bloqueios a sites pró aborto no Brasil pode ser visto aqui.
Consegui na Vivo, mas Claro bloqueia, lamentável.
Editor…. Corrige a matéria. Aparentemente é dot org e não dot com.
Quando li a chamada do mori, cliqui (Vi0) e abriu! Saí, porque estava interessada em ler a Newsletter antes, e quando voltei a clicar… nada!
Não consegui acessar pela celular da Claro, mas consegui acessar pela Internet via satélite da Yahsat. Pessoas aqui conseguiram acessar usando o Tor. A BBC criou, inclusive, um acesso ao BBC News exclusivo para o navegador Tor (https://www.bbcnewsv2vjtpsuy.onion/), para uso em países onde o seu conteúdo é bloqueado pelo governo, como China e Irã. O tempo da Internet livre está acabando, as pessoas precisam aprender a usar VPNs, Proxies e outras coisas. Vocês bem que podiam escrever um artigo sobre isso.
Tentei acessar o site pela Claro e realmente está bloqueado. Um absurdo. Eu pago um provedor para ter acesso à internet, não para ter bloqueio de internet. Que mundo é esse? Um site que traz informações sobre direito reprodutivo, autocuidado e fazer escolhas bem informadas é bloqueado – porque em ultima análise é voltado para o interesse e direito de escolha bem informada das mulheres. Enquanto isso um XVideos ou Redtube da vida, com categorias “de pornô” como gang bang, rape face, etc, pode ser acessado por qualquer pessoa (incluindo crianças de 10 anos, que aprendem sobre sexualidade vendo pornografia) em qualquer operadora, sem nenhuma restrição – porque em última análise, seriam voltados ao desejo masculino. Não importa o impacto que isto tenha na sociedade.
Eu não consigo nem descrever o que estou sentindo neste momento. É uma mistura de cansaço com indignação.
Obrigada Nathalia e Intercept pela informação de qualidade e pelo alerta. Jornalismo de verdade é isso: menos hipocrisia e conformismo, e mais luz sobre o que não está certo e precisa ser examinado. O trabalho de vocês é muito importante.
Não consigo acessar pela rede doméstica da vivo nem pela rede móvel da Tim. Isso é um absurdo… meu Deus.
https://www.womenonweb.org/pt/ E o https://www.womenonwaves.org/pt/ consegui acessar sem problema pelo navegador TOR já nos navegadores tradicionais não de certo
Pode-se acessar o website pela página do Facebook, clicando em qualquer publicação. Eu fiz isso agora, sem problemas. Boa sorte!
Minha internet em casa da Vivo não acessa, a do celular que é da Tim tb não.
Se alguém estiver precisando, o site pode ser acessado via proxy. Também estão salvos prints com a página com informações do Brasil: https://imgur.com/a/NmC8GNq
Agora é esperar bloquearem o imgur.
Acabo de acessar o site pela rede da Vivo
testei no Tor e o site existe;
Acabei de ver que a TIM também bloqueou… Fim dos tempos!
Percebi o mesmo e vim comentar. 4g da Tim no meu aparelho não está abrindo o site.
O acesso pelo Tor Browser, entretanto, abre ele sem problemas. Inclusive há matéria na página sobre a censura que estão sofrendo, e formas de contorná-la.
Estamos rapidamente caminhando para uma teocracia típica dos talibãs
meus parabéns a esses provedores, que todos os outros sigam o exemplo.
desagradável
Cada dia que passa fico com mais raiva de viver nesse país atrasado, estamos se tornando a Arábia Saudita da América latina, não vejo a hora de me mudar pro Uruguai, Brasil se tornou o capital mundial do anti-intelectualismo e da desinformação, que triste.
Não rola de pedir a informação sobre a suposta decisão judicial via Anatel?
Outros sites de compartilhamento de arquivos também estão sendo censurados.
O site da women help women é uma alternativa segura q ainda não está bloqueada
Tenho internet da COPEL , e não abre também .