Uma enorme coleção de materiais nunca revelados fornece um olhar sem precedentes sobre as operações da força-tarefa anticorrupção que transformou a política brasileira e conquistou a atenção do mundo.
Em 13 de março de 2016, o procurador Deltan Dallagnol enviou a seguinte mensagem privada a Sergio Moro pelo aplicativo Telegram:
“E parabéns pelo imenso apoio público hoje. Você hoje não é mais apenas um juiz, mas um grande líder brasileiro (ainda que isso não tenha sido buscado). Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal. Sei que vê isso como uma grande responsabilidade e fico contente porque todos conhecemos sua competência, equilíbrio e dedicação.”
O coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba falava sobre as gigantescas manifestações populares daquele domingo a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que alçaram o então juiz da Lava Jato à posição de herói nacional. Mas nem o procurador, um admirador de Moro, conseguiu fazer uma defesa pública tão contundente do ex-juiz no levantamento do sigilo da delação de Antonio Palocci a seis dias da eleição presidencial como a que o ministro Edson Fachin fez ontem durante julgamento no Supremo Tribunal Federal.
O episódio está registrado nos arquivos da segunda turma do STF, que deliberava sobre a retirada da delação do ex-ministro Antonio Palocci de um processo da Lava Jato contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Fachin votou a favor da Lava Jato e contra a exclusão. E foi voto vencido: os ministros optaram por limar a delação de Palocci da acusação contra Lula por 2 votos a 1.
Fachin registrou em seu voto que não seria possível provar que houve atuação irregular de Moro ao anexar a delação faltando seis dias para o primeiro turno de 2018. A delação abasteceu capas de jornais, revistas e portais de notícias e movimentou as redes de WhatsApp da extrema direita às vésperas da eleição.
Quem discorda de Fachin é o próprio Deltan Dallagnol. Ele se debruçou sobre o caso com o procurador Roberson Pozzobon, colega de Lava Jato, e a conclusão de ambos foi de que Moro ultrapassou, sim, os limites.
Em 11 de novembro de 2018, dez dias após Moro se tornar superministro de Bolsonaro, Pozzobon fez a seguinte explanação a Dallagnol, pelo Telegram, enquanto debatiam texto que assinariam juntos:
Explico a conversa: Dallagnol e Pozzobon discutiam a redação de um capítulo que foi publicado no livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”, organizado pela economista Maria Cristina Pinotti. Eles falavam, especificamente, de um ponto do texto em que procuravam justificar a decisão de Moro de levantar os sigilos da conversa entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff e também da delação de Palocci. Foi justamente sobre essa delação que o STF decidiu ontem.
Pozzobon, que fora incumbido por Dallagnol de limpar a barra do “grande líder brasileiro” Moro, confessou ser incapaz de dar conta da tarefa. O livro foi publicado com o capítulo escrito por ambos. Mas não traz qualquer defesa das decisões de Moro nesses casos.
O MPF era contra a delação de Palocci. O ex-tesoureiro petista correu, então, à Polícia Federal e fez as mesmas acusações desprovidas de provas robustas que os próprios procuradores da Lava Jato já haviam mandado para o lixo. A PF abraçou as acusações do ex-ministro e selou o acordo.
Tratou-se, muito mais, de uma disputa de poder entre agentes públicos do que de revelações que abrissem caminho para novas investigações em benefício da sociedade. Palocci, que de bobo nada tem, se aproveitou. E, hoje, assiste a tudo de seu belo apartamento em Moema, bairro nobre paulistano, graças ao acordo.
Moro, que achava a delação fraca, resolveu torná-la pública semanas após recebê-la – e faltando seis dias do primeiro turno das eleições presidenciais. Óbvio, as acusações quase sem provas do ex-ministro foram manchetes em jornais e telejornais. Era 1º de outubro de 2018, uma segunda-feira. Exatos 30 dias depois, o então juiz anunciava que iria ocupar assento no primeiro escalão do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Como se sabe, Lula era favorito nas pesquisas até ser preso por ordem de Moro, após ter sua condenação ratificada em tempo recorde na segunda instância.
Foto: Evaristo Sá/AFP via Getty Images
Na tarde de ontem, durante o julgamento que acabou por excluir a delação de Palocci de uma ação penal na qual Lula é réu em Curitiba – acusado de ter recebido propina da Odebrecht – o ministro Gilmar Mendes disse:
“Verifica-se que o acordo foi juntado aos autos da ação penal cerca de três meses após a decisão judicial que o homologara. Essa demora parece ter sido cuidadosamente planejada pelo magistrado para gerar verdadeiro fato político na semana que antecedia o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018″. Ricardo Lewandowski, dono do voto faltante, seguiu a mesma linha, afirmando ter havido “inequívoca quebra de imparcialidade” de Moro.
As posições de Mendes e Lewandowski não surpreendem. Mendes se tornou crítico feroz da Lava Jato após a revelação dos diálogos mantidos entre Moro e os procuradores pelo Intercept e veículos parceiros. Lewandowski, notório garantista, ganhou fama pelas disputas verbais exaltadas com o relator do mensalão, Joaquim Barbosa. Odiado pela parcela da opinião pública que ansiava pela condenação dos envolvidos, se manteve firme em suas posições desde então.
A surpresa é Edson Fachin. Quando ganhou a vaga pela aposentadoria de Barbosa, eu fui colher impressões entre colegas de advocacia e de cátedra a respeito dele. Gente respeitável disse ver em Fachin um intelectual brilhante e um caráter incorruptível.
Fachin foi um advogado que fez carreira no direito civil, notadamente em questões de família. Assim, causou algum espanto quando ele se ofereceu para ingressar na cadeira deixada vaga por Teori Zavascki e acabou com a relatoria da Lava Jato (um complexo caso criminal) nas mãos. Como já se sabe, Dallagnol preferia ver seu caso nas mãos de Luís Roberto Barroso. Mas é difícil imaginar que ele esteja insatisfeito com a condução dada pelo sorteado.
Afinal, aha, uhu, o Fachin é nosso.